Abro os olhos, mas continuo sem enxergar. Não me acho onde procuro, e só me encontro comigo lá onde nunca estive. No segundo seguinte o lá não é mais lá, mudou de lugar ou fui que mudei? Não sei. Nada, não sei nada, não sei nadar e me sinto buscando ar, quase me afogando no mar de sentimentos que me inunda o peito. Busco as palavras, agarro-me a elas como se fossem barcos salva-vidas, como se pudessem me resgatar e devolver-me à terra firme. Ilusão, a terra da vida nunca é firme. Não adianta fazer planos, o terreno em que caminho é acidentado demais, todo passo pode ser em falso, e cada queda inevitável é a chance de um novo começo. Levanto, pé ante pé, fé não sei bem em quê. No sujeito, no desejo, na distração que leva ao ato e a atadura que estanca o sangue me dá força pra continuar. Sigo. Não por saber aonde ir, nem sequer por querer chegar, mas porque... Por quê mesmo? Não importa, não sei se há motivo, continuo apenas, caminhando a duras penas, penas perdidas no último voo, penas que começam a nascer mais uma vez, talvez por isso eu siga, porque há quem diga que a vida só acontece uma vez e prefiro me perder lá do que só me encontrar, a sós, aqui.
Eu só sei escrever sobre amor. Sou uma pessoa doce, melosa e brega. Tudo que escrevo cai nesse mesmo tema. Será que é isso mesmo? Na verdade sou muito menos doce do que gostaria, ou do que acho que deveria ser. Sou chata, intolerante, e altamente crítica. E não só amo. Eu odeio, fico irritadíssima e sei ser muito má. Só que acho isso ruim, então tento disfarçar. Por exemplo, estava agora mesmo irritada por sentir que não tenho escrito nada de novo, e ao mesmo tempo dizendo que não consigo me imaginar escrevendo outra coisa. Quando me defino assim, essa pessoa que só fala de amor, acabo me limitando. Se eu sinto raiva, se odeio, por que não falar disso também?
Então me veio a seguinte formulação: o ódio movimenta o mundo tanto quanto o amor. Dizem que a fé move montanhas, mas mesmo os religiosos são altamente influenciados pelo ódio. Todo o terrorismo atual e as guerras “santas” da história estão aí para provar. Parece loucura pensar que diferenças provoquem ódio e que um sentimento gere tanta destruição. Talvez por isso a dificuldade de falar de ódio, e minha resistência até mesmo em pensar nisso. Mas o fato é que todos nós odiamos. E como há infinitas formas de amar, também há um sem número de maneiras de odiar. Acho que aí reside a principal questão: o vilão não é o ódio, é o que fazemos dele. Por exemplo, eu estava aqui agora muito irritada. Com raiva, odiando um monte de coisas, pessoas, e até a mim mesma. E daí eu comecei a escrever. E, enquanto escrevia, as palavras correndo, comecei a pensar em coisas novas, ficar curiosa comigo mesma, com as minhas acepções acerca do ódio e de outros sentimentos ruins. Então tão repentinamente como me tomou, o ódio me deixou. Claro que nem sempre é assim, e não é possível fazer disso uma fórmula: quando odiar, escreva. O que aconteceu agora comigo foi apenas uma das possibilidades de lidar com o ódio. Mas basta uma para mostrar que não é preciso temer o ódio, a raiva ou qualquer sentimento. Ocorre-me agora que o medo é inclusive um fator primordial do ódio. Quantos odeiam o diferente por terem medo dele? Do que eu tenho medo quando evito falar de sentimentos e sensações que julgo errados? Temo me desconhecer, temo que ao trabalhar com significantes novos eu me desencontre de quem acho que sou. Só que agora, depois de escrever essas linhas que ainda nem sei ao certo que efeito terão em mim, tenho a certeza de que foi bom me desencontrar. Porque só assim me encontrei nova. E saí do castelo de conto de fadas que eu mesma criara, mas que mais do que me proteger, me prendia.
Esses dois trechos do Gonçalo Tavares têm me feito pensar: quanto tempo nós passamos – e perdemos – pensando? Planejando, tentando entender, buscando acertar? Eu sei que eu perco muita vida assim. Tudo que me acontece eu tento enquadrar em algum lugar, tento organizar dentro de um plano de vida que eu acho que deveria seguir. Tenho medo do erro, medo da impossibilidade de voltar atrás. Medo de perder. Só que esse tanto de medo acaba me paralisando tanto que perco a chance de viver. Continuo sem poder voltar atrás e o que é pior: sem ir para frente, ou nem mesmo dar um passinho para o lado. O pensamento é uma prisão que crio tentando proteger-me do imprevisível. Mas não é possível, o imprevisível, o acaso, o incontrolável, tudo isso é parte inexorável da experiência humana. Mas mesmo sabendo disso, não adianta: continuo tentando me esquivar. Fujo tanto que acabo parada no mesmo lugar. E sempre que ouço alguém como Gonçalo falando me assusto: como é possível viver assim? Simplesmente fazendo o que tem que ser feito, escrevendo o que tem que ser escrito, falando o que lhe vem à cabeça e só aí se encontrando com suas próprias decisões? Admiro muito quem consegue agir assim. Eu estou sempre atrás de certezas. Atrás de garantias. Atrás. Estou atrás de mim, atrás das dúvidas e dívidas com as quais não quero arcar. Mas a vida sempre cobra seu preço. Só posso viver e ser feliz às minhas custas. Se evito pagar o preço do erro, o preço do risco, sou cobrada pela procrastinação e o tempo que passa e não arrefece.
Por isso, por hoje, tentei deixar-me ir pela fala de Gonçalo. Escrever o que me atravessa sem tentar organizar o fim, por mais que isso doa. E me parece agora um final abrupto, mas penso: não são assim todos os finais?
Luto para escrever esse texto. Reluto por não querer escrever as palavras que têm me escrito. Temo dizer o que não quero e, talvez, o que quero também. Teimo em dizer que não sei nada. Mas luto, reluto, temo e teimo por não conseguir entrar em acordo comigo. Parte de mim está com raiva, quer que essa história acabe e a vida siga. Outra parte quer entender, ainda, os pormenores, detalhes (in)significantes que fizeram nós, mas não deram laço. E há também a parte que não liga pra raiva, não quer entender nada, e só quer viver o que resta de amor, viver o amor que é sempre resto. E há ainda eu. Que não consigo escrever as frases acima sem encher os olhos de lágrimas. Que odeio não ser capaz de dar fim a confusão. Que entendo, não entendo, e odeio as duas coisas. É, parece que há muito ódio por aqui. Mas é que só quem ama é capaz de odiar. E eu amo, muito. Todas as minhas partes te amam e te odeiam ao mesmo tempo. Todas sentem você. Então teimo. Teimo em dizer que te odeio. Temo dizer que te amo. Reluto em dizer por que luto. Luto para não viver o luto. Luto para não viver sem você.
Desde o dia em que assisti o filme “O Bigode”, de Emmanuel Carrère, tenho pensado sobre a verdade. No filme, passamos o tempo inteiro sem saber qual é a verdade de fato, e nem ao final dele essa resposta é dada. Afinal, o que é a verdade? Ela existe? A verdade só tem esse estatuto se nós o damos. O que é verdade para mim pode não ser para você. E isso não quer dizer que um dos dois esteja mentindo. Acontece que não há nada que envolva o humano que seja objetivo. Tudo é sempre influenciado pela nossa percepção, pelo que acreditamos, pelo que sabemos, e, para complicar ainda mais, pelo que não sabemos também. Nosso inconsciente tem papel de protagonista nas nossas verdades e mentiras. Por isso sempre que mentimos dizemos muito de nós. Qual foi a história escolhida? A desculpa dada? O que omitimos? Tudo isso tem ligação com algo de nós que desconhecemos.
Outro dia escrevi sobre como calar não era mais seguro do que falar. Pois mentir também não é mais seguro, nem mais perigoso. Contar, seja o que for, sempre cria laços. Tudo que dizemos e que nos é dito pode ser falso ou verdadeiro, pode inclusive ser verdadeiro quando foi contado a primeira vez e já não ser mais da segunda vez. Tudo pode ser falseado ou tornar-se verdade. Então essa verdade verdadeira que muitas vezes buscamos é utópica. A imparcialidade é uma utopia, tudo que diz respeito ao humano é arbitrário.
Sempre que alguém lhe conta algo você tem duas alternativas: acreditar ou não. Se formos checar a cada vez os fatos, buscar outras fontes, tentar fazer com que a pessoa seja “pega na mentira”, quem fica preso somos nós. O que importa é o discurso, não o conteúdo. E, se criar uma ficção é fácil, mantê-la não é, e tudo que for feito na tentativa de sustentar essa “mentira” pode dizer mais que a verdade não dita.
Já ouvi diversas vezes que sou muito crédula. E que tanta credulidade seria incompatível com uma pessoa inteligente. Discordo. Entender que o mais importante é dizer, e não a veracidade do dito, é algo que só vem da sabedoria de que não se pode saber tudo.
“- Vamos pegar uma mesa? O pessoal já está descendo.”
E se eu tivesse dito não? E se respondesse que preferia esperar ali pelos outros? E se o “pessoal” realmente descesse logo, e não duas horas depois? Peguei-me fazendo essas perguntas como se fossem possíveis. Como se tudo já não tivesse acontecido do exato jeito que foi. É tanto acaso, tanto não saber, que me assusto. A displicência com a qual vivi esse e os primeiros encontros me dá medo. E se não existisse facebook? E se não estivéssemos online no mesmo momento? Tantos “e se” que parece quase um milagre termos nos encontrado.
Milagre ou não, o fato é que, um ano depois, estamos aqui. Um ano depois, minha vida não tem nada a ver com a vida que eu levava na noite em que nos conhecemos. E boa parte disso é por sua causa. Não discorde, não negue, apenas leia. O nosso encontro mudou a minha vida não só pelo amor, pela paixão, pelos beijos e todas essas coisas boas e felizes que vivemos. Mas porque com você aprendo a ver a vida de um jeito mais leve. Na primeira carta que te escrevi comparei-me a uma pedra, e você ao vento, e disse que só o que eu queria era admirar teu vôo. Mas o que aconteceu foi melhor. Você me ensinou a voar. Não tenho ainda grande autonomia de vôo, não me arrisco a dar rasantes, mas já consigo flutuar um pouco. Volta e meia caio, afinal uma pedra ainda é uma pedra, mesmo quando desfeita em grãos de areia. A cada queda me desfaço um pouco mais, e logo corro tentando me colar e pensar-me inteira mais uma vez. Mas quando me acredito inteira não vôo, a completude fictícia pesa demais. Penso que é necessária uma medida exata para que eu não me desfaça completamente, mas ainda assim consiga voar. Pensar em medida me remete à matemática, então tento calcular, mas não há razão que resulte na medida do impossível. E essa medida do impossível é a mesma que uso tentando controlar tudo que sinto por e com você.
Porque muitas vezes acredito que posso mesmo controlar. Que conseguirei dosar como e quando sentir amor, raiva, desejo, carinho... Mas a verdade é que não controlo nada. Sinto tudo ao mesmo tempo, mudo de idéia e me contradigo mil vezes. Nada com você é seguro, garantido, tranqüilo. Segurança, certeza e garantia eram as minhas palavras. Tudo em mim é (ou era) muito sério, pesado, medido corretamente e arrumado milimetricamente. Agora não consigo mais ter certeza da pontuação que usei na frase anterior. Minhas interrogações só aumentam, os pontos finais tornam-se reticências, e as vírgulas tentam desesperadamente pausar o ritmo acelerado do coração antes que ele exclame à exaustão.
E no meio, e ao centro, de toda essa desarrumação está você. Não foram só as minhas pilhas de livros que nunca mais ficaram organizadas depois que te conheci. Eu nunca mais consegui me organizar. E o mais estranho disso tudo é que eu hoje gosto de entrar em casa e ver livros no chão, fora do lugar. Gosto de me pegar fazendo e pensando coisas que nunca considerara antes. Divirto-me até com meu destempero que me enerva, mas que vira graça no momento que você sorri. Quando você ri das minhas loucuras, me quebra. Quando você implica com a minha mania de organização, me derruba. Quando você puxa meu cabelo, me desmancha. Desde a primeira frase que te ouvi falar você me desconcertou. Você ainda me desconcerta. Aliás, acho que é isso: você me desconcerta tanto, que acabou me consertando.
"A vida é a sós - e, o que é pior, também a morte." Campos de Carvalho
Ocorre-me agora que um dos problemas, acho que o meu inclusive, é que falamos tentando não criar, mas apagar, desmerecer, superar. É muito comum falar de morte e solidão apenas como um lamento ou então como motivação para superação. Escuta-se muito por aí que “tudo passa”. Não acho que seja verdade. Lembrei-me de uma frase que me parece mais próxima da verdade: “Tudo passa, neste círculo infinito. Nada passa.” (Marcos Bassini). Isso me remete ao fato de que sim, as coisas passam, mas deixam marcas. Passar não significa apagar. Tudo que acontece, e muitas vezes o que não acontece, deixa marcas indeléveis, muitas vezes bem enterradas, escondidas no fundo do inconsciente, mas que sempre retornam.
Quando perdemos alguém, seja para a morte ou para a vida, perdemos um pouco de nós mesmos também. E essa perda deixa marcas, a presença do pedaço que falta, e que vai estar sempre ali. Tentamos moldar, preencher, esconder, mas somos feitos de mais do que carne, e a matéria humana não é tão maleável assim. Não há palavras, sentidos, ou explicações suficientes, a falta sempre escapa.
Quando falo da falta não me refiro apenas à morte ou outras perdas concretas, falo também da solidão, esse “A vida é à sós” de que falou Campos de Carvalho, a noção de que no fundo há um vazio que nunca será preenchido. Então, se não há preenchimento possível, e se nada passa, por que falar, por que escrever? Não para apagar, mas para contornar. Para construir com palavras uma borda que seja no vazio, uma fronteira feita de laços. Laços que quando são reais não se desfazem com a ausência, nem com a morte, eles contornam, amarram, seguram. Nascemos e morremos sós, mas as palavras já nos diziam antes de nascermos e continuarão nos escrevendo depois de morrermos. E é por isso que escrevo. É que, quando escrevo, não estou só.
O pensamento que segura o pulo dói mais do que esborrachar-se ao fim da queda.
Escrevi essa frase alguns meses atrás e desde então ela tem me acompanhado. Escrevi-a para falar de um outro, de um personagem, mas sempre que escrevo, mesmo falando do outro, estou falando de mim. Nesse caso, é como se tivesse escrito um mantra, que devo repetir a cada dia, para que não que me esqueça: "O pensamento que segura o pulo dói mais do que esborrachar-se ao fim da queda."
Porque eu escrevi mas não acredito, pelo menos não na maior parte do tempo. Eu passo dias, semanas, meses, presa ao pensamento que segura o pulo. Acho que se analisar bem, se conseguir entender exatamente como pular, escolher o local, estabelecer a posição do corpo, descobrir a velocidade do vento e a temperatura do sol, o pulo vai ser tranqüilo, e a queda, um simples aterrissar nas nuvens. Só que esse pensamento todo me custa muito. Fico nervosa com a possibilidade de que alguma coisa escape, de que alguma variável não tenha sido bem analisada. E penso que preciso de mais tempo para ter certeza de que tudo vai correr bem, e também que tenho que pular logo, ou as condições vão mudar e meu estudo terá sido em vão. As dúvidas me angustiam, e a angústia é das piores dores: "O pensamento que segura o pulo dói mais do que esborrachar-se ao fim da queda."
Será que fui eu mesma quem escreveu essa frase? Ou foi ela que me escreveu? Afinal, nem sei de que eu falo, mas sei que estou ali, no pensamento, apavorada com a queda. Medo de quebrar, de não conseguir levantar, de não ter quem me dê a mão. O problema é que se não pular não quebro, mas também não ando. Fico parada, na beira do precipício, e enquanto isso a vida passa por mim. E ao escrever isso me assusto com a possibilidade de que a vida passe e eu nem veja. O pensamento cega. Fecho os olhos não para pular, mas para pensar: "O pensamento que segura o pulo dói mais do que esborrachar-se ao fim da queda."
Qual é a saída? Há saída? Percebo que penso tentando encontrar a saída mais fácil, mais segura, mais indolor. Mas ela existe? Suspiro e digo, em voz alta, para tentar me escutar: não. Viver se escreve com risco. Não há evitação possível da dor que não evite também a vida. E quero tanto tentar não evitá-la. Mas quero e não quero. Presa no conflito entre o medo e o desejo, paro, penso. Penso até que quero pular, mas não pulo. E os pensamentos já me controlam de novo: o que é pular, como faço, como saberei que pulei... "O pensamento que segura o pulo dói mais do que esborrachar-se ao fim da queda."
Pular, agora, é escrever esse texto. É soltar essas palavras e conviver com os efeitos delas que restarão em mim. É endereçá-las e descobrir o que elas causarão no outro. É cair, porque sei que elas não dirão tudo, e nem me traduzirão do jeito que eu quero. Mas não há outro jeito. Se é preciso me inscrever nessa frase - e é preciso - tenho que pular com ela. Mesmo sabendo que um pulo não garante o próximo. E que a cada vez precisarei escrever, e viver, de novo: "O pensamento que segura o pulo dói mais do que esborrachar-se ao fim da queda."
- Não consigo nem olhar pro lado.
Essa poderia ser uma piada, e de certa forma é, mas aconteceu de fato. Há poucas semanas, comentando um texto, escrevi que nosso corpo, mais do que carne, é feito de palavras. Parece que meu corpo quis corroborar meu dito e ainda me mostrar que o “não conseguir olhar pro lado” metafórico, o das palavras, dói muito mais do que o torcicolo.
Algumas pessoas podem pensar que foi uma coincidência, ou que estou inventando, ou ainda minimizar, mas o efeito dessa tradução que meu corpo faz das palavras que digo me assusta, e muito. Se meu próprio corpo às vezes não entende o que eu quis dizer, quem vai entender? Aliás, o que significa essa expressão eu quis dizer? O que eu quis dizer não existe, o que vale é o que eu disse. Temos a tendência de contemporizar tudo: “o que vale é a intenção”, “eu não quis magoar”, “eu não sabia”. Não importa. Não faz diferença se não foi bem isso que eu quis dizer. Foi o que eu disse.
E, além disso, mesmo que eu explique perfeitamente o que queria dizer, nunca sei como o outro vai entender. Só sei que não será exatamente como pensei. Não há correspondência plena entra o que se diz e o que o outro escuta. Cada um é marcado pelas palavras de forma diferente. Ao ouvir a palavra diferença eu evoco alguns significados, você certamente diria outros. Não é porque você não me entendeu bem e preciso dizer de outra forma, é porque não há entendimento possível. Mas não acreditamos nisso, e seguimos nos comunicando assim, tentando o tempo todo nos entender, nos explicar, achando que esse é o grande objetivo da linguagem, que é a compreensão que nos une. Não é.
As palavras não nos ligam ao outro melhor se o entendimento for maior. O que faz laço, o que nos aproxima, está além do sentido. É o que a sua palavra desperta em mim, o que a minha letra causa em você. E isso não temos como controlar, por melhor que expliquemos. Só distraídos do entendimento é que dizemos o que mais nos marca.
Vejo agora como me desviei do que achava que seria esse texto. O corpo ficou lá em cima, as palavras me escreveram e me levaram para outro caminho, e eu segui. E não vou reescrever, em outro momento talvez escreva sobre a força das palavras sobre o corpo. Hoje, escrevi sobre a força das palavras em mim.
- O problema é que você sabe demais.
Sobre cada uma dessas situações eu teria algo objetivo a dizer: concordar, discordar, fazer ressalvas. Opinar. Eu tenho opinião para tudo, ou se não tenho acho que deveria ter. Eu sei muita coisa e sou completamente apegada a esse saber. Acho que tudo deve ser feito depois de ser entendido, medido, etiquetado e organizado. Sou mestre em definir, classificar, organizar. Eu acredito que posso prever o que vai acontecer, como vou me comportar, como o outro vai agir. Muitas vezes eu acerto, mas na verdade nem é preciso acertar. Porque as expectativas são assim: você as cria e elas vão ser correspondidas ou não. São apenas duas opções, ambas previstas anteriormente. Indo bem ou mal, já sei o que vai acontecer.
Só que a verdade é que viver não tem nada a ver com saber. Eu sei de um monte de coisas, sei como resolver problemas, entendo tudo de tudo e continuo sem perceber o principal: que o saber não vale de nada nas coisas que realmente importam. O que nos move, o desejo, o amor, essas coisas vem de outro lugar. São coisas que caem sobre nós, tempestades que nos fazem voar se nos soltarmos, mas derrubam se tentamos nos segurar. E eu me seguro a maior parte do tempo. Seguro-me em teorias, previsões, planos. Luto a todo custo para que nada aconteça fora do que previ. Fecho a porta, as janelas, me sufoco, presa num ambiente de ar morno, morto, parado, rarefeito e viciado. Tudo por medo. E eu sei disso. Mas, mais uma vez, o saber não me adianta de nada.
Preciso me soltar. Preciso pular e cair até que o ar puro infle meus pulmões e eu consiga voar. O mais paradoxal – e real - é que sei que um dos pensamentos que me segura é o que diz: há uma chance de que você não planeje nada e tudo aconteça de um jeito ainda mais maravilhoso do que quando você previu que daria certo.
- Já estou vendo que você é perigosa.
Quase um ano depois percebo quanto tempo e energia gastei tentando provar a ele – e a mim – minha resposta: não sou perigosa. Sou estável, confiável, leal, segura. Numa analogia que usei muitas vezes em relação a nós me descrevo como pedra. Mas de que pedra falo? Uma pedra enorme, parada, pesada, quase montanha, intransponível? Ou uma pedra de rio, que apesar de presa no mesmo lugar a cada dia muda, sendo lixada e moldada pela força das águas? Ou ainda uma pedrinha daquelas que resultam de britadeira no asfalto, tão pequena e leve que voa com o vento quase como se vento fosse?
Sempre julguei que era a maior, imutável, e por isso não oferecia perigo nenhum: o que podemos prever não nos assusta. A repetição acalma; por pior que seja, sabemos como lidar com ela. Mas hoje, quando me vejo, não me reconheço. Quando me penso, não me entendo. Quando me sinto, não me explico. Acho que poderia ser qualquer uma dessas pedras. Acho que sou todas. E me assusto. Porque não sei se sou perigosa. Perigosa para quem? Para o outro? Se nem eu sei quem sou, quem é esse eu que me habita, que corpo é esse que me pertence, mas não me comporta, como posso garantir ao outro que sou estável? Não posso. Não tenho mais garantias, nem certezas, e elas me faltam enormemente. A sensação é de que elas quando partiram me despedaçaram. E agora sou esse monte de pedaços, fragmentos de histórias que não se juntam mais harmoniosamente. Tento me colar e acabo criando um mosaico de mim.
Porque acho que preciso dar garantias ao outro? Porque acredito que, sem elas, ele vai embora. Porque ainda reluto em aceitar que é o desejo, e não o saber que une as pessoas. Porque eu preciso de garantias. Ou costumava precisar. Aí está meu maior medo, o grande perigo que represento: eu mudo. Mudo para não emudecer. E quando falo, as garantias se acabam. Quando abro a boca, ou mexo os dedos, não sei o que vai sair. Ao começar a escrever essas linhas, não sei onde vou parar. Não posso garantir que você vai gostar do que ler. Pode ser uma história triste ou pode ser uma declaração de amor. Qual delas te assusta mais?
(...)
É curioso pensar nas conseqüências dos nossos atos ou do que nos acontece quando o tempo decorrido nos afasta da situação. Ao escrever agora sobre aquela noite tive uma percepção completamente diferente da que me tomou quando ela era, ainda, o suposto último encontro, e mesmo quando, duas semanas depois, deixou de sê-lo.
Lembrava-me de um encontro cheio de poréns, atrapalhado, esquisito, mesmo que tenhamos conseguido rir da situação e não levá-la tão a sério. E achava que isso era uma coisa ruim, que um encontro desses significaria, mais do que qualquer coisa, o fim. Hoje, no entanto, acho que foi justamente esse emperrado que nos levou a um novo encontro. Não houve um fim propriamente dito naquela noite. Mas será mesmo que veio daí o desejo de um novo encontro? Não há como saber. Mas o que percebi é que desde então a história que construímos se parece muito com aquela noite: cheia de falhas, de faltas, de imprevisibilidade, de atrasos, de separações...
Confesso que relutei muito antes de aceitar essa nossa relação. Acreditava que queria outra coisa: um relacionamento tranquilo, com alguém mais simples e em que tudo fosse mais fácil. Sempre achei que minha felicidade fosse diretamente dependente de estabilidade e organização. E talvez tenha sido, mesmo. Também por isso nunca gostei de mudanças. Mas elas acontecem, mesmo comigo, apesar de mim.
E fui descobrindo que para cada falha há um sorriso. Para cada atraso, um beijo. Para cada separação, um novo encontro. E me vi cada vez mais feliz onde menos esperava: no meio dos imprevistos, da indefinição e da incerteza. Porque, de repente, o susto virou surpresa. O surto virou desejo. E todas as decisões tomadas sem antecedência, sem análise, sem estudo, deram certo. De repente, a sorte. Uma sorte inacreditável, coisa de livro, coisa de filme, coisa nossa. E quem vai lutar contra a sorte?
Eu poderia. Acho que ainda luto, ainda lutamos. Mas a luta faz parte, também. Os recuos que são como a maré se recolhendo para voltar numa onda maior. Não temo mais que a onda me derrube. Arrisco o passo sem saber se será adiante, se será tropeço, ou se será queda. Não importa. Cair não me apavora mais. Porque na nossa história o que é fim, de repente, se torna começo.
Saber, entender, definir, organizar, explicar, resolver. Lógica, certeza, sentido, razão.
Se Clara tivesse que escolher dez palavras para representá-la essas seriam as escolhidas. Sem dúvida. Dúvida, aliás, é uma palavra que nunca entraria no vocabulário de Clara. Ela sabia de tudo, sempre. Às vezes ainda não sabia, mas logo iria saber. Clara sempre acreditou que quanto mais soubesse mais previsível seria sua vida. E previsibilidade era o que Clara mais sonhava.
Mas era um sonho muito controlado, que sonhar demais é perigoso. Clara sempre andou com os dois pés no chão: fazia o que devia fazer, gostava do que devia gostar, tudo nela era correto. Clara era a filha exemplar, a melhor aluna, a amiga perfeita, foi menina para namorar, depois mulher para casar, e seria a mãe ideal para os futuros filhos.
Tudo seguia de acordo com o planejamento, até que um dia parou de seguir. Esse é o problema de organizar tanto, quando alguma coisa sai do lugar o castelo inteiro despenca. E Clara descobriu-se, de repente, no meio de escombros. Durante o desabamento ela perdeu pessoas, sonhos, toda uma vida perfeita e exaustivamente planejada. Mas sua maior perda ela só percebeu muito tempo depois: quando caiu, Clara perdeu seu Eu, esse que ela tinha levado tantos anos cuidando para que nunca saísse do lugar.
Confesso que tenho um respeito pelas palavras que chega à margem do medo. As palavras que digo, quando as digo, perco-as, perco a posse imaginária que tenho sobre elas. Então muitas vezes calo. Por medo de soltar palavras e ter que aceitar que elas me atravessam, me marcam, passam por mim, mas não as retenho, seu destino é outro - o outro. É no ouvido do outro que minhas palavras ganham voz.
Quando as palavras saem de minha boca - ou dos meus dedos – para o mundo, seu destino é sempre imprevisível. O que você entende quando eu digo: imprevisível? Foi realmente isso que eu quis dizer? Certamente não. Há uma dissimetria inevitável, entre a intenção que tem aquele que diz e o significado dado por aquele que escuta, que nunca desaparece.
Essa dissimetria me angustia e, por isso, tento definir tudo, sempre. Adjetivos e advérbios em profusão, tentando dar conta daquilo que ouço, leio, penso, tentando amarrar as palavras para que elas não saiam por aí tomando outros rumos, novos caminhos, diferentes daquele que luto tanto para estabelecer.
Mas, por mais que eu tente, a vida não obedece. Quando menos espero sou tomada por algo que não consigo apreender ou definir. Todos os adjetivos e verbos, de todas as línguas do mundo, não são suficientes. Pode ser um encontro, uma obra de arte, as palavras de um outro, o amor. Seja o que for, nesses momentos agradeço por não ser tão eficiente em minhas amarrações. Porque são os momentos em que estou mais viva. Momentos imprevisíveis, indefiníveis, e, por isso mesmo, inesquecíveis.
(...) continuamos andando, lado a lado, até um trecho que tinha uma carcaça de barco no mar, você se lembra? Eu lembro porque foi aí que paramos, para ver o tal barco, e você me tocou. Você só encostou, segurando muito de leve o meu braço. Mas bastou isso. Em um segundo fui completamente tomada pelo desejo e o pânico que sempre o acompanha. Você sentou-se na mureta. E eu, de repente tão nervosa, fiquei em pé. Falamos de poesia. Eu disse que “Ou Isto Ou Aquilo” era meu livro favorito na infância. Você recitou um trecho. Alguma coisa muito estranha estava acontecendo. Quais as chances de sair com um homem capaz de recitar Cecília Meireles? E, mais, a tua voz. Você recitava com aquela voz, e me olhava com aquele olhar. Pensei que fosse chorar, ou rir, alguma coisa ia acontecer. Então você me puxou, me abraçou, e me beijou. E me beijou. E segurou de leve meu cabelo, daquele jeito que você hoje sabe tão bem que me desmancha inteira. E era tudo bom. O beijo, a mão no cabelo, a voz no ouvido, os olhos nos olhos. Eu teria ido com você pra onde quer que fosse naquele momento. Mas nunca imaginaria que acabaríamos na praia que tantas vezes fui quando criança. Um lugar que me era cheio de lembranças infantis, de família, daquela felicidade doce e plena que experimentamos algumas vezes na infância e ficam guardadas para sempre em nós. Ao levar-me ali você, sem saber, ativou algumas das minhas mais doces memórias. E eu, sem saber, deixei que você se alojasse junto a elas.