segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

(des)canso

Tenho medo de muita coisa. Eu posso parecer forte, segura, bem-resolvida e analisada, mas é só fachada, uma armadura que uso para me proteger. Na verdade tenho muito medo. Medo de falar, de sentir... Mais que tudo eu temo me perder e não saber como voltar a esse eu que suponho que sou. Só que tem momentos que esse medo todo cansa. É exaustivo lutar tanto contra essa entrega, essa paixão, esse amor, essa coisa que você me causa e que nem nome consigo dar. Mas temo, muito, me dar assim: indefinida, imperfeita, errada. E sinto que às vezes até as minhas palavras se cansam e me escapam pela boca para descansar dentro de ti. E eu só queria poder fazer o mesmo. Escapar do meu medo, do meu controle, de mim, e descansar, tranquila, naquele côncavo entre teu braço e teu peito, que é, pra mim, o lugar mais perfeito do mundo.

A permanência do sentimento

"Amor, amizade, o que é que isso quer dizer? São convenções, minha querida. As pessoas amam-se ou não se amam. Depois há diversas formas de exprimir esse afecto, que vão mudando ao longo do tempo. O que acontece é que a sua família é composta por pessoas intensas. Pessoas capazes de suportar a permanência do sentimento, com todos os seus desequilíbrios internos, uma vida inteira. Não há muitas pessoas assim."

Inês Pedrosa, "Nas Tuas Mãos".

Repetidas e melosas palavras de amor...

(...)

André: - Não sei de onde você tira essas idéias, Clara.

Clara: - Do mesmo lugar que você tira as suas, do pensamento. A diferença é que seus pensamentos são sempre muito vivos, mesmo sua melancolia tem um traço de vida que encanta e nos faz ter menos medo de abrir a porta.

André: - Isso não é verdade, você só acha isso porque está apaixonada por mim.

Clara: - Eu acho isso porque é a única explicação que tenho para a porta escancarada com a qual te recebo. Porque preciso sempre de explicações, sentidos, motivos, preciso organizar tudo que penso, sinto e faço. Eu normalmente só falo depois de saber exatamente o que falar e como falar. Mas contigo nada disso importa, minhas palavras bonitas, secas e corretas desaparecem e quando dou por mim só falto morrer de vergonha das repetidas e melosas palavras de amor que me acreditava incapaz de pronunciar.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Por que?

Teus olhos que me descobrem.

Tua boca que me dá fome.

Tuas mãos que me seguram e me libertam.

Tua pele que me veste feito luva.

Teu cheiro que me inebria.

Teu toque que me desloca, louca.

Teu sabor que é deleite.

Tuas palavras que me tatuam.

Teu sonho que me dorme.

Teu ritmo que me compõe.

Tua neurose que me faz abrigo.

Teu sorriso que me faz piada.

Teu tempo que me faz presente.

Tua impermanência que me repete.

Tua hesitação que me faz desejo.

Tua chatice que me faz companhia.

Tua presença que me faz boba.

Teu caminho que me faz estrada.

Você que me faz eu.

127 horas - o que restou.

"Temos que lutar sempre.”, “Tudo é possível." e “Você é capaz se acreditar.” são os temas principais de 127 horas, certo? Bem, pode-se até dizer isso, mas eu não concordo.

O filme mostra o protagonista, Aron, e os cinco dias que ele passa num canyon no meio do nada depois de cair e ficar com o braço preso por uma pedra. Durante todo o filme temos alguns indícios de como Aron vivia: nunca avisava a ninguém aonde ia, não atendia os telefonemas da mãe, e duas frases em cenas com a (ex)namorada me chamaram a atenção: em uma ela brinca perguntando qual era a combinação para entrar no coração dele. Aron responde: Se eu te dissesse teria que matá-la. (Claro que é uma brincadeira, mas são palavras e elas sempre dizem alguma coisa.) E a outra, ao terminar o namoro, em que a ex lhe diz: Você vai ficar muito só, Aron. Essas são cenas das quais Aron lembra-se durante os 5 dias preso. Aliás, tudo que ele lembra ou alucina tem a ver com o mesmo tema: auto-suficiência e solidão. Aron, até aquele momento, acreditava poder viver só e não precisar de ninguém.

Quando sai para a escalada mostrada no filme, ele, como sempre, não avisa a ninguém onde estará. Depois de algum tempo preso vem o pensamento inevitável: se soubessem onde ele estava possivelmente teria sido resgatado logo. A lição do filme poderia, então, ser a de que ninguém vive sozinho, não somos auto-suficientes, precisamos do outro. Mas ainda acho que não é disso que se trata. É claro que, para quem, como ele, era tão individualista, a situação que viveu, e tudo que percebeu, tem esse lado de mostrar a importância de passar pelo outro. No entanto, se não fosse tão acostumado a fazer tudo sozinho talvez Aron não tivesse sobrevivido.

O interessante do momento em que Aron pensa sobre esse resgate que não virá em conseqüência do fato que ele não disse à ninguém onde estaria é a constatação de que o modo que leva sua vida, suas ações, cada atitude, o levaram até aquela situação. Passou-me uma idéia de que mesmo com todo o acaso de escorregar, a pedra cair e prender seu braço ele ainda assim se responsabiliza por aquilo que lhe acontece. Aron, numa experiência limite, não fica preso à culpa nem se faz de vítima, lamenta, reclama. Ele toma para si a responsabilidade. Ele é como é, faz o que faz, e isso traz conseqüências, algumas boas, outras ruins. Ele assume que tudo que lhe acontece, por mais casual que seja, tem a ver com sua posição na vida. E me vem agora, o que não tinha ainda me ocorrido, que talvez por isso ele tenha conseguido permanecer são e salvar-se.

Por isso, muito mais do que a importância de não se isolar ou de acreditar-se capaz e alcançar seus objetivos, o que me restou do filme foi a responsabilização pelo que nos acontece: cada pequeno passo dado na vida leva a outro e disso fazemos nosso caminho, e mesmo o maior acaso terá sempre diferentes conseqüências dependendo da posição de quem o vive. O que nos cabe é, então, responsabilizarmo-nos por nossa vida, que engloba tanto nossas atitudes conscientes e inconscientes como nossa reação aquilo que nos acontece e não está sujeito ao nosso controle.

Espero que eu, como Aron, consiga submeter-me a isso.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Resenha: Jerusalém.




A novidade da vida.

"Com os hábitos certos e monótonos Hinnerk procurara diminuir as possibilidades daquilo a que se poderá chamar de "o novo"."

Hinnerk pode até temer o novo. Todas as personagens de "Jerusalém" parecem temê-lo em medidas diferentes. A nossa sorte é que seu autor não apenas não o teme como parece buscá-lo. Sua escrita e sua história não se parecem em nada com coisa nenhuma, e é aí que reside meu maior ponto de encantamento com Gonçalo.
"Jerusalém" me deixou constrangida ao ler em suas páginas nossas incansáveis tentativas de transformarmo-nos em marionetes de nós mesmos. Gonçalo mostra de forma muito sensível, inteligente e sutil como passamos nossos dias tentando a todo custo evitar o novo, a surpresa, o imprevisto. Ou seja, passamos nossas vidas tentando evitar a própria vida.
As personagens são "claramente" loucas, mas basta um olhar um pouco menos superficial para perceber que não são mais perturbadas que qualquer um de nós.
Ao terminar o livro passei muito tempo pensando em como livrar-me dessa maldita tentação de encaixar-me na personagem que criei para mim mesma, como permitir que a vida e seus acontecimentos caiam sobre mim, como abrir espaço para o frescor que Gonçalo tanto me fez desejar. E quando estava lá, pensando, maquinando, organizando idéias, lembrei-me novamente de Gonçalo, que em outro livro diz: "É impossível viver e pensar ao mesmo tempo." e fui então atingida pela certeza de que é só assim, sem pensar, que os acontecimentos realmente novos, aqueles que mudam nossas vidas, podem acontecer.
E, apesar de ter iniciado a leitura compartilhando do medo de Hinnerk, ao terminá-la (e esse fim só chega agora, ao escrever essas palavras) fico com a feliz certeza de que a vida acontece, apesar de mim.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011


Só você
consegue me
trans-
f(l)or-
mar.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Por amor.


"Agora preciso de tua mão, não para que eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor."

Clarice Lispector, "A Paixão Segundo G.H.".

O Discurso do Rei - o que restou.

Preciso começar esse texto avisando que não vou fazer resenha, análise, etc do filme em si, até porque nem saberia, vou falar apenas do que o filme me causou.

Contexto mínimo: o protagonista do filme, Albert, é um príncipe e segundo na linha de sucessão ao trono da Inglaterra. Seu pai é o rei George V e Albert tem um irmão mais velho que é quem assumirá o trono quando o pai morrer. E Albert é gago. Desde sempre, ou pelo menos desde que se lembra.
A gagueira é protagonista do filme tanto quanto Albert. É o sintoma que fala o que ele não pode - quase literalmente. E foi justamente isso que tanto me tocou do filme, e que ainda está ecoando: a solução de compromisso do sintoma, o que fazemos para não assumir nosso desejo. Albert não nasce livre: ele é um príncipe, tem mil compromissos de todos os tipos, morais, sociais, familiares. E a gagueira surge na sua dificuldade de falar por si, de dar-se voz e viver estando nesse lugar que lhe é dado sem tornar-se prisioneiro dele. No filme talvez seja mais fácil perceber isso pela caracterização da personagem, a realeza e tudo o mais. Mas, na verdade, esse é o grande dilema de todos nós.
Todos nascemos já tendo um lugar. Já fomos sonhados - ou não, pensados, esperados, palavras de outros já nos definem. É nesse mundo que nascemos, ninguém é uma tábula rasa e o que nos resta é assumir esse lugar, seja correspondendo a ele ou criando um outro. Mas temos que ocupá-lo e, de lá, agir conforme nosso desejo (desejo em termos psicanalíticos, que não é o que queremos ou gostamos ou achamos legal, mas o que nos define e nos move). E aí está a encrenca. Porque se estamos na neurose, agir conforme o desejo não é simples. Enrolamos, damos nós, voltas, tentamos fugir... E o sintoma entra nisso. Albert é gago. O rei tem compromissos públicos, faz transmissões de rádio, precisa ter boa oratória. Logo, Albert não pode ser rei. Mas, de alguma forma, desde o início, percebe-se que o desejo dele está nisso. É o mesmo ponto, sempre, o que mais tememos e o que desejamos. Daí a dificuldade.
Termino então aqui na esperança de que, com sorte, eu possa, eventualmente, ser quem o eu é. *

*"Eu sou quem o Eu é." é uma frase de Lacan, do seminário XVI, "De um Outro ao outro."



Calo por medo, falo por pavor.

As palavras me assustam. As palavras que digo, quando as digo, perco-as. Perco a posse imaginária que tenho sobre elas. Saem da minha boca - ou dos meus dedos – para o mundo, e seu destino é sempre imprevisível. Por isso muitas vezes calo. Por medo de dar minhas palavras ao outro e ter que aceitar que elas me atravessam, me marcam, passam por mim, mas não as retenho, seu destino é outro - o outro. Temo porque sei que não há explicação que explique tudo, não há certeza de ser entendida – aliás, o que há é a certeza de não sê-la. Porque nem eu entendo. Mas há também a necessidade de falar e passar por esse outro, pois só assim há alguma chance de comunicação e de não perder-me em solidão. Sou, então, isso: calo por medo, falo por pavor.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A matemática do amor


"Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente."

Clarice Lispector, "Felicidade Clandestina".

‎"Um dia meus pais perguntaram-me:
- Filho, o que queres fazer da vida?
E eu respondi-lhes:
-Tudo, exceto ser espectador."


Gonçalo M. Tavares, "O homem ou é tonto ou é mulher."

Chico: mais, ainda.


"Mas se com a idade a gente dá pra repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida."

Chico Buarque, "Leite Derramado".

*Sempre ilustro o post com fotos do gettyimages.com, mas essa, excepcionalmente, é minha mesmo. E eu sei que o livro é "Estorvo" e não "Leite Derramado", mas é Chico também, e a capa é linda, e foi tirada durante uma história que não para de acontecer em mim.

Resenha: "Os Cus de Judas".

Vou começar dizendo, antes de qualquer coisa, que acho que "Os Cus de Judas" é uma obra-prima.

A escrita de Lobo Antunes realmente não é fácil, não é algo que seja possível ler em qualquer lugar, de qualquer jeito. É preciso degustar o que ele escreve. E ainda assim, o gosto que fica é amargo. Em vários momentos durante a leitura a palavra "cru" era a que me vinha para definir o que estava lendo.

É um livro que fala de guerra, morte, amor, tudo com a mesma dureza. É impressionante como Lobo Antunes escreve de modo tão poético e ao mesmo tempo tão seco. As palavras não acolchoam a dureza dos sentimentos do protagonista. A sensação que tive o livro todo foi da busca por um conforto que não chegava nunca. E não é isso a vida? Não é o que a maioria de nós faz, diariamente? Nesse ponto fiz um paralelo com “Jerusalém”, do Gonçalo M. Tavares. O protagonista de “Os Cus de Judas” me parece igualmente encalacrado em seu desespero, ao mesmo tempo achando que o problema é que lhe faltam certas coisas, que algum dia as possuirá, seja um amor, o fim da guerra, outra personalidade, e enquanto isso a vida lhe passa e tudo que acontece de possivelmente bom é negligenciado. Como diz genialmente Lobo Antunes:

“Não é em si que não acredito, é em mim, na minha repugnância em me dar, no meu pânico de que me queiram, na minha inexplicável necessidade de destruir os fugazes instantes agradáveis do quotidiano, triturando-os de acidez e ironia até os transformar no Cerelac da chata amargura habitual.”

Nesse momento, que já é depois da metade do livro, Lobo Antunes, através do protagonista pergunta:

“O que seria de nós, não é, se fôssemos de facto felizes?”

É uma pergunta que me tocou muito porque não sei respondê-la. A teoria dele é que não sabemos lidar com isso, com momentos felizes e fugazes, com um amor que nos é dado sem nada pedir em troca, que isso nos confunde. Minha tendência, por mais que eu não goste, é de concordar com ele. Termino aqui na esperança de que algum dia alguém me convença do contrário.

*Resenha que escrevi há alguns meses no skoob, como postei alguns trechos do Lobo Antunes achei legal postar a resenha também.
** Toda hora falo do skoob, se alguém quiser conhecer ou fizer parte e quiser me adicionar lá é só clicar aqui.

Tu, talvez, eu só tenho estado à sua espera.

"(...) esgotadas as forças dos corpos, os espíritos aproveitam para levantar timidamente o dedo e pedir autorização para entrar, perguntam se lhes permite fazer ouvir as suas razões, e se eles, corpos, estão preparados para lhes dar atenção. É então que o homem diz à mulher, ou a mulher diz ao homem, Que loucos somos, que estúpidos temos sido, e um deles, misericordiosamente, cala a resposta justa que seria Tu, talvez, eu só tenho estado à sua espera. Ainda que pareça impossível, é este silêncio cheio de palavras não ditas que salva o que se julgava perdido, como uma jangada que avança do nevoeiro a pedir os seus marinheiros, com os seus remos e a sua bússola, a sua vela e a sua arca do pão."

José Saramago, "O Homem Duplicado".

Não resistimos mesmo...

"Se uma mulher me pedir: - Quero que subas até o 10º andar pelas escadas e lá do alto grites que me amas; se uma mulher me pedir isto, é claro que eu não vou subir a lado nenhum, nem gritar nada - que não sou de gritos - mas de certeza que vou lhe dar um beijo. Elas não resistem a isso."


Gonçalo M. Tavares, "O Homem ou é Tonto ou é Mulher".

Vem, entra. A casa é tua.

Balanços - II

"Como saber sem tentar?
Como tentar se é tão fácil
conformar-se de saída
com a idéia do fracasso?

Pois fracassar justifica
o não se ter nem sequer
admitido não querer-se
aquilo que mais se quer.

É um beco sem saída,
mas sempre melhor que a rua:
mais estreito. Acolhedor.
Vem, entra. A casa é tua."

Paulo Henriques Britto, "Tarde".

Sujeito Indireto

Sujeito Indireto

"Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.

Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.

Quem dera um angulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito."

Paulo Leminski

Eu sou tua.


Às vezes sinto uma vontade desesperadora de fugir também. De sair antes de você, para não ter que lidar com o enorme vazio que sei que você vai deixar. Mas meu desejo é mais do que o que eu quero. Eu sou para além de mim. Eu sou tua. Então espero, me entrego, e coleciono os nossos momentos, para continuar te escrevendo quando inevitavelmente você se for.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Clara: felicidade.


Olhou-se no espelho e tomou um susto. Olhos sorridentes a encaravam. Pensou: onde eu estava esse tempo todo enquanto a mulher de olhos tristes dava lugar a essa menina de sorriso tão doce? Não sabia nem que era capaz de sorrir assim. E como era possível que o tempo passasse e, ao invés de envelhecer, aquela mulher tivesse tornado-se, enfim, uma menina? Nada fazia sentido, e Clara achava que aquele sentimento era paradoxal demais para ser real. Respirou fundo e tentou organizar as coisas. Organizar e classificar sempre a acalmavam. Enumerou os acontecimentos: o tempo havia passado; ela tinha sofrido; chorado; perdido. Perdeu pessoas, sonhos, toda uma vida perfeita e exaustivamente planejada. Tinha sido muito difícil, mas Clara sempre tinha uma saída para os momentos difíceis: um novo plano, novas metas, realocação de sentimentos e expectativas. E foi isso que ela fez. Reestruturou-se e acreditou ter encontrado um novo equilíbrio.
Os dias aos poucos se adaptavam à nova rotina. Conheceu outras pessoas, acreditou em outros sonhos, pensou outra vida. Tudo acontecia dentro do novo planejamento, até que, um dia, a vida aconteceu. Não a vida que Clara pensava, mas aquela que o Real a obrigava a viver. O acaso. Clara assustou-se. Tentou controlar, fugir, negar: ela era muito boa nisso. Mas o acaso tinha nome e sobrenome. E tinha olhos, boca, pele e voz. E era tudo tão vivo que chegava a assustar. A cada vez que Clara tentava controlar lembrava-se dos olhos. A cada vez que tentava fugir pensava na boca. A cada vez que tentava negar sonhava com a pele. E, quando escapava de todo o resto, ouvia a voz. E aí voltava. Voltava, esperava, sorria, chorava, sentia tudo ao mesmo tempo e não entendia nada. Não entender e não saber sempre foram os maiores medos de Clara.
Então, de repente, viu-se perdida, sem ter a menor idéia do que estava fazendo. E o pior veio em seguida: não sabia dizer o que sentia. A palavra felicidade saiu de sua boca, mas não era possível. Desde quando felicidade é essa coisa louca e estranha, não planejada, no meio de mil incertezas e nenhum tipo de garantia? Felicidade para Clara sempre dependera da conjunção correta de vários fatores. Mas não conseguia evitar. Estava apaixonada, e feliz, vivendo uma relação completamente fora de todos os seus padrões. Ainda assim, era só lembrar-se dos olhos, sentir a boca, ouvir a voz, que ela sorria. Bastava um toque para que ela se desmanchasse. Tinha que admitir que estava perdida. Não fazia idéia de onde aquele caminho a levaria. E pela primeira vez não se preocupou. Só queria que aquele homem a tomasse e a levasse para junto dele, onde quer que isso fosse.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

"cheios de mãos supérfluas sem bolsos para ancorar"

"Nunca tivemos tempo, não é, uns para os outros, e agora é tarde, estupidamente tarde, ficamos assim a olhar-nos, ausentes, estrangeiros, cheios de mãos supérfluas sem bolsos para ancorar, à procura, na cabeça vazia, das palavras de ternura que não soubemos aprender, dos gestos de amor que nos envergonhamos, da intimidade que nos apavora."

António Lobo Antunes, "Explicação dos Pássaros".

Pedaços.


Não me dou inteira porque não sou inteira. Sou partida, quebrada, rasgada. Sou os pedaços que me fazem, e não posso juntar os cacos sozinha.

O Eterno Adiamento da Neurose - ou a procrastinação nossa de cada dia.

"O homem no meio da escada hesitava há vários dias entre subir e descer. Os anos passavam e o homem continuava a hesitar: subo ou desço? Até que certo dia a escada caiu."

Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Brecht".

A Pedra e o Vento

Eu sempre senti em você algo que escapa. Algo fugidio, como se você tivesse asas, sempre buscando alçar novos vôos, inquieto e curioso demais pra permanecer muito tempo no mesmo lugar, com as mesmas idéias, com as mesmas pessoas. Como se o ar que te faz vivo só pudesse ser respirado em movimento, como se você respirasse vento. A sensação é que o mundo que você vive é muito mais bonito e rico do que o das outras pessoas, do que o meu, por exemplo. Mas não é isso. Você não vive num mundo só seu, louco e irreal, a mágica está em aceitar a realidade que existe, submetendo-se ao fato de que ela está sempre em transformação, sem tentar fixar todo acontecimento e sentimento, sem dar peso excessivo à coisa alguma. O novo é que, quando surge, sempre parece – e é - mágico.

Surpreendo-me com o fato de você me atrair tanto. Eu não sou leve. Eu não vôo. Eu sempre fui pedra. Eu quero que o mundo pare, que nada mude, ou que só mude com autorização prévia, pesquisada e documentada. Em teoria, eu detestaria vento. Eu sempre detestei. Mas o vento que você traz me encanta, encantamento que vem da sua própria inconstância. Às vezes ele chega como tempestade, que derruba minhas certezas, embaralha meus conceitos e traz em seu sopro novidades lindas e assustadoras. Em outras é uma brisa de fim de tarde, na beira da praia, que traz um respingo de água pra refrescar as idéias, e o cheiro gostoso de mar que me faz relaxar e me entregar. Ou pode ser ainda um furacão, que me envolve e me cega para qualquer coisa que não seja meu desejo por você, desejo de ser tua, de ser arrastada pelo teu vento, mesmo que isso deixe marcas, talvez porque isso deixe marcas.

O que resta em mim, quando você passa ventando, é uma pedra um pouco mais leve. Teu vento leva um pouco do meu peso. Fica mais possível me deslocar sem rumo certo. Então penso que faria sentido que, mesmo tendo medo, eu quisesse te prender, segurar seu vôo do meu lado, pra não me afastar dessa sensação de liberdade e vida que você me traz. Mas te prender é te perder. E me vejo subitamente assaltada pela necessidade não de te segurar, mas de escrever, de me declarar e te declamar, de admirar e velar seu vôo.

*Essa é a primeira de uma série de cartas entitulada "Cartas ao Vento".

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Eu (des)espero, você (re)volta.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Perco-me em você

Quanto mais palavras lhe entrego menos sei se sou eu que as dou, ou elas que me dão. Seja o que for, é dado assim, meio sem jeito, quase recuando, sem saber e quase sem querer, que esse é o jeito que é possível me dar. Porque ao dar, palavras e a mim, eu perco o controle que ilusoriamente tento manter. Perco a possibilidade de fazer sozinha uma música que não é mais só minha .Perco minha certeza na sua dúvida. Perco-me em você.

Clara: por que não sei falar de amor?

Clara: - Irrita-me essa minha língua ferina que opina sobre tudo, critica por medo, ridiculariza por vergonha, mas cala quando tento falar de amor. É como se, de repente, todas as palavras fugissem de mim.

Ana: - É porque estás acostumada a falar apenas do que acha que já sabes, já entendes e consegue organizar o suficiente, Clara. Mas não vais conseguir saber ou organizar o amor, e nem segurar à força as palavras que dele dizem. É preciso perder-se, e estar disposta a apenas soprar as palavras que lhe vêm do vento.


Há um homem, há uma mulher.


Há um homem. Ele me ama, ele me odeia. Por ele eu faria tudo e não faço nada. Ele tem mil perguntas e eu nenhuma resposta. Eu tenho mil reclamações e ele nenhuma solução. Ele me despreza, me ignora, me agarra, me convoca. Eu grito, choro, fujo, obedeço. Ele me manda embora, eu vou. Eu o chamo, ele vem. Ele puxa, eu me desmancho. Eu encosto, ele se desfaz. Ele me beija, eu me perco. Ele me deseja, eu me entrego. Há um homem, há uma mulher.

*Texto provocado e inspirado pelo livro "Uma Mulher" do genial Péter Esterházy.