“- Vamos pegar uma mesa? O pessoal já está descendo.”
E se eu tivesse dito não? E se respondesse que preferia esperar ali pelos outros? E se o “pessoal” realmente descesse logo, e não duas horas depois? Peguei-me fazendo essas perguntas como se fossem possíveis. Como se tudo já não tivesse acontecido do exato jeito que foi. É tanto acaso, tanto não saber, que me assusto. A displicência com a qual vivi esse e os primeiros encontros me dá medo. E se não existisse facebook? E se não estivéssemos online no mesmo momento? Tantos “e se” que parece quase um milagre termos nos encontrado.
Milagre ou não, o fato é que, um ano depois, estamos aqui. Um ano depois, minha vida não tem nada a ver com a vida que eu levava na noite em que nos conhecemos. E boa parte disso é por sua causa. Não discorde, não negue, apenas leia. O nosso encontro mudou a minha vida não só pelo amor, pela paixão, pelos beijos e todas essas coisas boas e felizes que vivemos. Mas porque com você aprendo a ver a vida de um jeito mais leve. Na primeira carta que te escrevi comparei-me a uma pedra, e você ao vento, e disse que só o que eu queria era admirar teu vôo. Mas o que aconteceu foi melhor. Você me ensinou a voar. Não tenho ainda grande autonomia de vôo, não me arrisco a dar rasantes, mas já consigo flutuar um pouco. Volta e meia caio, afinal uma pedra ainda é uma pedra, mesmo quando desfeita em grãos de areia. A cada queda me desfaço um pouco mais, e logo corro tentando me colar e pensar-me inteira mais uma vez. Mas quando me acredito inteira não vôo, a completude fictícia pesa demais. Penso que é necessária uma medida exata para que eu não me desfaça completamente, mas ainda assim consiga voar. Pensar em medida me remete à matemática, então tento calcular, mas não há razão que resulte na medida do impossível. E essa medida do impossível é a mesma que uso tentando controlar tudo que sinto por e com você.
Porque muitas vezes acredito que posso mesmo controlar. Que conseguirei dosar como e quando sentir amor, raiva, desejo, carinho... Mas a verdade é que não controlo nada. Sinto tudo ao mesmo tempo, mudo de idéia e me contradigo mil vezes. Nada com você é seguro, garantido, tranqüilo. Segurança, certeza e garantia eram as minhas palavras. Tudo em mim é (ou era) muito sério, pesado, medido corretamente e arrumado milimetricamente. Agora não consigo mais ter certeza da pontuação que usei na frase anterior. Minhas interrogações só aumentam, os pontos finais tornam-se reticências, e as vírgulas tentam desesperadamente pausar o ritmo acelerado do coração antes que ele exclame à exaustão.
E no meio, e ao centro, de toda essa desarrumação está você. Não foram só as minhas pilhas de livros que nunca mais ficaram organizadas depois que te conheci. Eu nunca mais consegui me organizar. E o mais estranho disso tudo é que eu hoje gosto de entrar em casa e ver livros no chão, fora do lugar. Gosto de me pegar fazendo e pensando coisas que nunca considerara antes. Divirto-me até com meu destempero que me enerva, mas que vira graça no momento que você sorri. Quando você ri das minhas loucuras, me quebra. Quando você implica com a minha mania de organização, me derruba. Quando você puxa meu cabelo, me desmancha. Desde a primeira frase que te ouvi falar você me desconcertou. Você ainda me desconcerta. Aliás, acho que é isso: você me desconcerta tanto, que acabou me consertando.
"A vida é a sós - e, o que é pior, também a morte." Campos de Carvalho
Ocorre-me agora que um dos problemas, acho que o meu inclusive, é que falamos tentando não criar, mas apagar, desmerecer, superar. É muito comum falar de morte e solidão apenas como um lamento ou então como motivação para superação. Escuta-se muito por aí que “tudo passa”. Não acho que seja verdade. Lembrei-me de uma frase que me parece mais próxima da verdade: “Tudo passa, neste círculo infinito. Nada passa.” (Marcos Bassini). Isso me remete ao fato de que sim, as coisas passam, mas deixam marcas. Passar não significa apagar. Tudo que acontece, e muitas vezes o que não acontece, deixa marcas indeléveis, muitas vezes bem enterradas, escondidas no fundo do inconsciente, mas que sempre retornam.
Quando perdemos alguém, seja para a morte ou para a vida, perdemos um pouco de nós mesmos também. E essa perda deixa marcas, a presença do pedaço que falta, e que vai estar sempre ali. Tentamos moldar, preencher, esconder, mas somos feitos de mais do que carne, e a matéria humana não é tão maleável assim. Não há palavras, sentidos, ou explicações suficientes, a falta sempre escapa.
Quando falo da falta não me refiro apenas à morte ou outras perdas concretas, falo também da solidão, esse “A vida é à sós” de que falou Campos de Carvalho, a noção de que no fundo há um vazio que nunca será preenchido. Então, se não há preenchimento possível, e se nada passa, por que falar, por que escrever? Não para apagar, mas para contornar. Para construir com palavras uma borda que seja no vazio, uma fronteira feita de laços. Laços que quando são reais não se desfazem com a ausência, nem com a morte, eles contornam, amarram, seguram. Nascemos e morremos sós, mas as palavras já nos diziam antes de nascermos e continuarão nos escrevendo depois de morrermos. E é por isso que escrevo. É que, quando escrevo, não estou só.